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terça-feira, 22 de abril de 2014

A bíblia dos samurais


Herdados de religiões orientais clássicas, como o Budismo, Xintoísmo e Confucionismo, os samurais confeccionaram um código existencial próprio, que em muito lembra o posterior modo de vida dos cavaleiros medievais. Humildade, defesa dos mais fracos, fidelidade inquestionável, autocontrole e dominação das capacidades humanas: essas eram algumas das "leis" do Bushidô, que em japonês significa literalmente "Caminho do Guerreiro".
Mais do que doutrinar e iluminar seus leitores, essa bíblia dos guerreiros foi responsável por uma forma de se ver a vida como um todo, e não apenas exercer um ofício. Como uma religião, o bushidô trata das atitudes sociais através da emancipação mental e desenvolvimento pleno da consciência, como as religiões que o originaram, sendo, portanto, muito mais profundo do que pode aparentar. Isso acontecia tanto para gerar servos fiéis à corrupção de seus líderes quanto para não fazer com que sua ganância fizesse com que se voltassem contra seus empregadores, mas, para os samurais, esse modelo de vida valia mais do que qualquer dinheiro ou controle político - tanto que a desonra era um caminho certo para a morte, por exemplo através do seppuku ou harakiri (abaixo).

O suicídio nessa lenta e dolorosíssima maneira era considerado uma forma de redimir a desonra
Desprendimento dos bens terrenos, recusa da riqueza e propinas, busca pela verdade; até o cristianismo, teria coisas em comum com os ensinamentos do Bushidô. Além da parte moral e social, a doutrina incluia a meditação como forma de autocontrole e reflexão justa sobre o mundo, o que fazia do samurai muito mais que um guerreiro estúpido girando uma espada: nobres, leais, justos e bondosos, esses homens até hoje figuram como exemplos de evolução física e espiritual ao redor do mundo. Se você gostou do tema, os filmes do diretor japonês Akira Kurosawa recriam com fidelidade a época. Um de seus mais famosos é o "Sete Samurais", que ilustra bem a conduta desses guerreiros na sociedade feudal japonesa. Aqui as 8 virtudes do samurai, de acordo com o Bushidô:
7 Samurais, de Akira Kurosawa
1 - Justiça ou Retitude
"A retitude ou justiça é a mais importante das virtudes. Um famoso samurai a definiu assim: Retitude é o poder de alguém de decidir uma conduta de acordo com a razão, sem pestanejar; morrer quando for a hora de morrer, atacar quando fora a hora de atacar. Já outro define assim: Retitude é o osso que dá firmeza e estatura; sem ossos a cabeça não pode descansar no alto da espinha, nem as mãos ou os pés se apoiarem. Sem ela, talento ou aprendizado são inúteis para formar um samurai."

2 - Coragem
"Coragem só pode ser contada como virtude se for exercida pela causa do Correto e da Retitude. De acordo com Confúcio, 'Perceber o que é certo e fazer o que não é revela a falta de coragem'. Ou seja, coragem é fazer o que é certo, não importa o preço."

3 - Benevolência ou Misericórdia
"Espera-se que um homem que tem o poder de comandar e matar tenha poderes equivalentemente extraordinários de benevolência e misericórdia; amor, magnanimidade, afeição pelos outros, simpatia e pena são características da benevolência, o maior atributo da alma humana. Tanto Confúcio quanto Mencius sempre diziam que o mais alto requisito para um governante é a benevolência'."

4 - Gentileza
"Cortesia e boas maneiras sempre foram notados pelos estrangeiros como virtudes do Japão. Mas a gentileza deve ser a expressão da benevolência independente do que sentimos pelos outros; é uma virtude pobre se motivada apenas pelo temor de ferir o bom gosto dos outros. Em seu ponto mais alto, a gentileza (ou cavalheirismo) se aproxima do amor."

5 - Honestidade e Sinceridade
De acordo com o Bushidô, um samurai de verdade desdenha o dinheiro, pois crê que "os homens devem abominar o dinheiro, pois ele é um empecilho para a sabedoria". Os filhos de grandes samurais eram criados de forma a acreditar que falar sobre dinheiro mostrava um gosto pobre, e que a ignorância sobre o valor de diferentes moedas mostrava boa criação. O Bushidô incentivava a frugalidade e auto-sustentação, como um exercíco da abstinência. Luxúria era considerada a maior ameaça para a humanidade, e uma simplicidade severa era exigida para a classe dos guerreiros. Máquinas de contar, como o ábaco, eram odiadas.

6 - Honra
Apesar do Bushidô tratar da profissão de soldados, é igualmente preocupado em questões não-marciais. "O senso de honra, uma vívida consciência de dignidade pessoal e valor, caracterizam o samurai. Ele nasceu e foi criado para valorizar as responsabilidade e privilégios de sua profissão. O medo da desgraça flutua sobre a cabeça de cada samurai como uma espada afiada...Sentir-se ofendido por uma pequena ofensa era ridicularizado na classe dos guerreiros, que não deviam agir de forma impulsiva, o que originou o ditado 'A verdadeira paciência é suportar o insuportável'."

7 - Lealdade
A realidade econômica havia criado um impacto negativo bastante forte na lealdade ao redor do mundo, o que não era diferente no Japão. Apesar disso, os verdadeiros samurais eram leais até mesmo no caso de seus mestres falirem, fazerem algo duvidoso ou com o qual não concordavam. "Lealdadade a um superior era a mais distintiva virtude na era feudal. A fidelidade pessoal existe em todo lugar, por exemplo numa gangue de batedores de carteira que juram respeito ao seu líder. Mas apenas o código de honra de um cavaleiro honra a lealdade e a assume como um elemento primordial na relação", fosse ela entre servo e mestre, pai e filho, irmão mais e velho e mais novo e por aí vai.

8 - Caráter e Autocontrole
De acordo com o Bushidô, o homem deve agir de acordo com uma moral absoluta, que transcende até mesmo a lógica. O que é certo é certo, e o que é errado é errado. Não existe meio termo. A diferença entre eles é dada e conhecida, e não existem argumentos sujeitos à discussão ou que precisem de justificativas. "A primeira meta da educação de um samurai é construir caráter. As sutis faculdades da prudência, inteligência e dialética são menos importantes. Intelectualidade superior é estimada, mas um samurai é basicamente um homem de ações."

"Não existe nada fora de você que o permitirá ser melhor, mais forte, mais rico, rápido ou esperto. Tudo está dentro. Tudo existe. Não busque nada que está fora de você mesmo", Musashi
Pois é, por isso que eles não tinham medo da morte e nada podia comprá-los: a crença budista de que a vida era feita de reencarnações estimulava o comportamento de monge dos samurais, que, apesar de assassinos extremamente eficazes, eram treinados como máquinas virtuosas para não ter seu poder fora de controle. Até o Homem Aranha sacou essa: "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". Pena que não durou muito, pois com a descoberta da pólvora, a criação dos ninjas e a construção das cidades modernas, a honra e a lealdade se tornaram virtudes beirando o ridículo, assim como a sinceridade, e logo a sociedade samurai foi destruída - o que se pode ver no não-tão-fiel-à-história filme com Tom Cruise, "O último samurai".
Apesar disso, até hoje tem gente que vive de acordo com o Bushidô - e, bem ou mal, sabe quais são os preços e recompensas de viver uma vida moldada pela moral inabalável. Ou, nas palavras de Musashi, um dos mais famosos samurais, "Os homens devem moldar seu caminho. A partir do momento em que você vir o caminho em tudo o que fizer, você se tornará o caminho". 
Uma ilustração da época em que a tradição ainda era viva

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